A história do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras

Não faz sentido o argumento do novo governo de que a redução das alíquotas foi feita às escondidas

Em 30 de dezembro de 2022, o governo Bolsonaro editou o Decreto 11.322, que reduziu à metade as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras das empresas que estão no regime não cumulativo dos tributos. A alíquota do PIS passou de 0,65% para 0,33%, e a da Cofins de 4% para 2%. O decreto entrou em vigor na data de sua publicação, e produziu efeitos a partir de 1º de janeiro de 2023. No entanto, no dia 2 de janeiro o novo governo publicou no Diário Oficial da União o Decreto 11.374, anulando o decreto editado três dias antes, e retornando as alíquotas aos níveis anteriores.

Saiu um governo liberal que trabalhava pela redução da carga tributária, por ganhos de produtividade, e por um maior crescimento econômico, entrou um governo com foco na expansão da rede de bem-estar social, o que naturalmente requer uma carga tributária mais alta. Até aí, nada de surpreendente nesses decretos. Há, no entanto, um pequeno detalhe no decreto de janeiro que causou um enorme imbróglio jurídico, com o tema indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do art. 4º: “Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação”. O que se esperava era algo do tipo: Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação, e produz efeitos a partir de 1º de abril de 2023. Ou seja, o governo optou por não respeitar o princípio constitucional da anterioridade nonagesimal, em que a majoração da alíquota de um imposto só pode ter efeitos após transcorrido o prazo de 90 dias.

Naturalmente, houve uma enxurrada de ações na justiça para que as alíquotas reduzidas pelo Decreto 11.322 fossem mantidas ao longo do primeiro trimestre de 2023. Até meados de fevereiro contavam-se 414 ações na justiça, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). As decisões favoráveis aos contribuintes foram se acumulando rapidamente, o que levou a Advocacia-Geral da União (AGU) a ingressar no STF com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 84), juntamente com um pedido de liminar para que sejam suspensas as decisões em favor da cobrança com alíquotas reduzidas até primeiro de abril de 2023.

O que está em jogo é aproximadamente R$ 1,46 bilhão, o equivalente a mais ou menos 25% da perda de arrecadação anual esperada (de R$ 5,8 bilhões) com a adoção das alíquotas mais baixas. Uma primeira decisão do ministro Lewandowski proferida no dia 8 de março foi favorável ao governo, mas o tema está em julgamento no plenário do STF entre 17 e 24 de março.

O argumento do governo está baseado na ideia de que o Decreto 11.322 seria um abuso de poder de desoneração tributária, e que a edição do decreto às vésperas da posse do novo governo teria sido um atentado à transparência fiscal, frustrando as expectativas de arrecadação da nova equipe econômica. Portanto, o Decreto 11.322 seria inconstitucional por violação ao princípio da proporcionalidade, que deve servir para o controle abstrato de constitucionalidade e “neutralizar abusos do Poder Público no exercício de suas funções. … (A) redução da carga tributária — a ser acomodada, evidentemente, pelo novo governo — denota ausência de transparência fiscal e o inequívoco objetivo de ingerência da política fiscal do governo que se iniciou no dia 1/1/2023, agravando o quadro de desequilíbrio das contas públicas“.

Talvez um relato de como surgiu a proposta que culminou no Decreto 11.322 e como ela ganhou força no ministério possa ajudar a desfazer a confusão que a medida causou. Essa é uma história que começa em 2004. PIS e Cofins não cumulativos já eram parte integrante do sistema tributário

nacional, e naquele momento discutia-se a cobrança desses tributos sobre as importações, como um ajuste fiscal de fronteira, com a finalidade de dar igualdade de condições competitivas entre a produção doméstica e os similares importados. Foi então editada a Lei 10.865/2004, introduzindo a cobrança do PIS e da Cofins sobre as importações. Nela havia um artigo curiosamente desconectado do conteúdo restante da lei, o artigo 27.

Nesse artigo o legislador facultou ao Poder Executivo a escolha da alíquota do PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras das empresas no regime não cumulativo, via decreto. Empresas no regime cumulativo já não pagavam PIS e Cofins sobre suas receitas financeiras. Na sequência, passados apenas cinco meses da edição da lei, foi editado o Decreto 5.164/2004, que zerava as alíquotas dos dois tributos. De fato, a lei foi editada já com a expectativa de que logo em seguida viria o decreto zerando as alíquotas. Os relatos de técnicos que estavam no ministério nesse período são de que havia sido fechada uma brecha fiscal na tributação das grandes empresas brasileiras, que acarretaria aumento de arrecadação. O artigo 27 da Lei 10.865 de 2004 seria então uma espécie de compensação às empresas, de modo que um efeito anulasse o outro em termos de arrecadação.

Por pouco mais de uma década perduraram as alíquotas zero do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras das empresas no regime não cumulativo. Até que em 2015, com o país enfrentando uma séria crise fiscal, o governo Dilma editou o Decreto 8.426/2015, que elevou as alíquotas do PIS de 0% para 0,65%, e da Cofins de 0% para 4%. Essas eram as alíquotas vigentes até a edição do decreto de 30 de dezembro de 2022.

Ao final de 2021 já se sabia que aquele ano produziria um ganho espetacular de receitas fiscais. Em termos reais a arrecadação federal aumentou 17,36% em comparação a 2020. Um crescimento cerca de 3,5 vezes maior do que o crescimento real do PIB brasileiro, que foi de 5% em 2021. Cerca de R$ 326 bilhões de reais (ou R$ 352 bilhões em valores de hoje) foram arrecadados a mais pelo governo federal em 2021.

Uma parte dessa arrecadação é notoriamente resultado do ciclo econômico, que apresentou retração em 2020 e forte recuperação em 2021. Porém, há evidências de que uma parte considerável desse ganho teve um caráter estrutural, e se incorporou permanentemente à arrecadação. Por exemplo, a Nota Informativa da Secretaria de Política Econômica “Elevação estrutural da arrecadação federal”, publicada em setembro de 2021, estimou esse ganho estrutural em R$ 110 bilhões. Em 2022 a arrecadação federal continuou subindo mais do que o PIB: crescimento de 8,18% ante cerca de 3% do PIB.

O ministro Paulo Guedes, seguindo a melhor tradição econômica liberal, tratou de achar formas de devolver o que fosse possível desse excedente de arrecadação à economia, na forma de desonerações tributárias. Impostos mais baixos estimulam o investimento privado. Projetos que não são economicamente viáveis com uma carga tributária alta podem se tornar viáveis com uma carga tributária mais baixa. Mais investimento, via de regra, significa mais crescimento econômico, mais prosperidade e mais bem-estar.

Foi nesse contexto que surgiram as medidas de redução horizontal do Imposto de Importação (II) em duas rodadas de 10% de desoneração cada, e da redução do IPI. Ocorre que reduzir imposto no Brasil é muito mais difícil do que se parece. Apenas os impostos regulatórios, com função não puramente arrecadatória, como o II, o IPI e o IOF são mais facilmente modificáveis. E mesmo assim reduções em alíquotas muitas vezes não são politicamente factíveis. Isso ficou bem evidente em 2022, no episódio em que os parlamentares do estado do Amazonas fizeram uma oposição ferrenha à redução do IPI, que produzia o efeito colateral de diminuir a vantagem tributária relativa da Zona Franca de Manaus frente ao resto do país.

Por volta de janeiro de 2022, o time da Secretaria de Política Econômica (SPE) passava um pente fino nos decretos editados nos anos de 2015 e 2016 pelo governo Dilma. Havia uma percepção de que medidas tomadas durante a crise econômica de 2015 e 2016, quando o PIB per capita brasileiro caiu mais de 10%, e a arrecadação despencou junto, não mais fariam sentido em 2022. Foi aí que o Decreto 8.426/2015 entrou no radar da SPE. A revogação desse decreto era uma desoneração fácil de ser executada porque não precisava passar pelo Legislativo. Dependia apenas da edição de um novo decreto.

A proposta inicial era de desoneração total do imposto. As alíquotas do PIS e do Cofins sobre as receitas financeiras das empresas sob o regime do lucro real seriam zeradas, exatamente como eram antes de 2015. A proposta foi inserida no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do Ministério da Economia e os primeiros despachos assinados ainda em março de 2022. A propósito, a Lei de Acesso à Informação (LAI) garante o acesso de qualquer pessoa às informações lá contidas. Essa proposta teria um custo fiscal estimado em cerca de R$ 11,6 bilhões. Ao longo da discussão sobre o orçamento de 2023, foi reservado um espaço fiscal para essa desoneração equivalente à metade desse valor – R$ 5,8 bilhões. Portanto, a ideia original de zerar as alíquotas deu lugar a uma desoneração mais modesta, em que as alíquotas cairiam pela metade.

Não faz sentido, portanto, o argumento de que a medida foi feita às escondidas, de última hora, de modo a atrapalhar a nova administração. A proposta de desoneração do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras foi gestada em março de 2022, quando ninguém sabia quem seria o presidente em 2023. Ela passou pelo escrutínio de toda a equipe econômica do ministro Paulo Guedes até ser incluída no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023, apresentado à nação em 31 de agosto de 2022. Na página 22 da Mensagem Presidencial sobre o PLOA/2023, de 14 de julho de 2022, lê-se: “A medida com renúncia mais significativa nesse rol é a redução das alíquotas do PIS/Cofins sobre receitas financeiras, auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa, estabelecida pelo Decreto 8.426, de 1º de abril de 2015”.

Onde está a ausência de transparência fiscal? Como é possível dizer que há um objetivo de ingerência na política fiscal do governo que se inicia em 1º de janeiro de 2023, se em julho de 2022 não se sabia qual seria esse governo? Não faz o menor sentido o argumento de que a redução das alíquotas do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras representa um abuso do poder público, referente a uma desoneração tributária a ser arcada pela próxima administração. Evidentemente, em julho de 2022 ninguém sabia qual seria essa administração.

No dia 1º de janeiro, o jornal O Globo publicou a respeito da desoneração do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras: “A desoneração dos impostos pegou a equipe do futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de surpresa. Conforme revelou a colunista do GLOBO Miriam Leitão, Haddad vai revogar a medida, considerada um acinte pela nova equipe econômica”. A nova equipe econômica não teria se surpreendido com a desoneração, e nem a consideraria um acinte, se estivesse bem familiarizada com o PLOA 2023. E talvez a confusão do PIS/Cofins sobre as receitas financeiras pudesse ter sido evitada.

Fonte: JOTA

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