O que muda com a entrada em vigor do Marco Legal das Criptomoedas?
Lei 14.478/2022 foi aprovada no fim do ano passado e passa a valer a partir de junho. Ainda é necessário regulamentá-la
Líder no mercado latino-americano de criptomoedas, o Brasil ficou em sétimo lugar no ranking global de adoção de moedas virtuais em 2022, da empresa de análise em blockchain Chainanalisys. Em relação à penúltima edição do levantamento, de 2021, o país cresceu sete posições e ficou à frente de mercados como a China e a Inglaterra.
Segundo estimativa da empresa de criptomoedas TripleA, em 2021, o Brasil detinha 5% da população com criptoativos – o equivalente a cerca de 10,4 milhões de pessoas. Estima-se que o valor total de transações com ativos digitais chegou a R$ 317 bilhões em 2021 – seis vezes o valor de 2020.
Com esse crescimento acelerado, especialistas destacam que o país tem condições de se tornar um dos líderes mundiais do mercado de criptomoedas. A aprovação da Lei 14.478/22, que oferece diretrizes para a atuação de exchanges – ou corretoras de ativos virtuais – reforça o otimismo e as apostas no país.
Conforme o diretor-presidente da Associação Brasileira de Criptoeconomia (Abcripto), Bernardo Srur, o Brasil assume a dianteira em termos de regulamentação do mercado de criptomoedas, o que dá segurança jurídica para as operações e atrai mais investidores.
“Com a nova lei, cria-se a possibilidade de se ter uma enxurrada de investimentos, não só de capital de risco, mas de investimentos”, afirma Srur. Segundo ele, à exceção de Dubai, outros mercados desenvolvidos como os Estados Unidos, União Europeia e Reino Unido ainda não têm leis amplas para tratar da questão.
Srur diz que a expectativa do setor é ter o processo de regulamentação concluído até junho, na entrada em vigor da nova lei, que não possui eficácia plena. Segundo ele, embora o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha prioridades, como a reforma tributária, as discussões para a implementação da Lei da Criptomoedas estão avançando de forma adequada.
O diretor jurídico da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Vicente de Chiara, diz que o novo marco legal é muito bem-vindo, sobretudo, porque não regulou o ativo digital, mas a atividade das corretoras. “A lei removerá a assimetria regulatória entre as exchanges e as instituições bancárias, que também passaram a trabalhar com criptoativos e que já contam com forte regulamentação de suas atividades”, destaca.
De acordo com Felipe Carteiro Moreira, sócio da área de Direito Digital do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados, a nova lei protegerá, em especial, o investidor que não é especialista em ativos digitais já que continuará havendo os investidores independentes, que compram e vendem de forma isolada, sem intermediários. “A legislação contribuirá com o aumento de capital no mercado e poderá fomentar mercado nacional de exchanges”, pontua.
Mesmo considerada um avanço, a lei – aprovada depois de sete anos de discussões – se omite sobre aspectos como a competência de órgãos sobre a gestão do sistema de ativos digitais. A aposta de Thiago Sombra, sócio de Tecnologia e Compliance do escritório Mattos Filho, é que haja uma
atribuição conjunta entre o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Para Sombra, o ideal é que enquanto o Banco Central assuma papel mais orientador, para traçar diretrizes gerais com o fim de evitar práticas de lavagem de dinheiro, o Coaf foque na fiscalização e no estabelecimento de sanções. Já a CVM seria responsável pelos ativos móveis.
Segregação patrimonial
Outro ponto omisso no Marco Legal das Criptomoedas é a segregação patrimonial, prática que mantém o dinheiro dos clientes separado dos ativos corporativos das corretoras. A questão chegou a ser incorporada pelo Senado Federal no texto do Projeto de Lei n. 4401/2021, de autoria do deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), que deu origem à nova lei. No entanto, acabou sendo retirada na aprovação pela Câmara dos Deputados, antes de seguir para sanção presidencial.
Especialistas ouvidos pelo Jota esperam que no processo de regulamentação da lei se contemple a segregação patrimonial, que já é feita nos segmentos imobiliários e de pagamentos. “É muito prudente abordar essa questão para que haja confiança nos investimentos em criptoativos”, reforça de Chiara.
Srur, por sua vez, defende a aprovação do Projeto de Lei 2681/2022, de autoria da senadora Soraya Thronicke (União – MS), que visa implementar a segregação patrimonial das corretoras. A defesa para que esse aspecto seja contemplado na legislação fica ainda mais forte após os escândalos recentes envolvendo o caso de fraude da corretora FTX, que se tornou insolvente usando o patrimônio de clientes.
Outro ponto removido do PL 4401/2021, mas de forma pacificada, foi a obrigatoriedade de as corretoras terem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) no Brasil. O entendimento foi o de que a lei só pode ser aplicada em território nacional e, por isso, não há necessidade de esse ponto ser expresso no texto.
Combate à lavagem de dinheiro e ao estelionato
Entre os avanços trazidos pela nova lei está a regulamentação de crimes praticados com as criptomoedas, entre os quais estão o estelionato e a lavagem de dinheiro. A lei insere novos tipos penais em leis já existentes – como o Código Penal e a Lei de Lavagem de Dinheiro –, com aumento de pena caso crimes sejam praticados por meio dos criptoativos.
Para Maria Jamile José, especialista em Direito Penal Econômico, embora seja positivo contemplar os novos tipos penais na legislação, é preciso leis mais específicas para lidar com crimes tão complexos e de mais difícil detecção como é o caso dos praticados com criptoativos. Ela acredita que, com o desenvolvimento do mercado, os fenômenos serão estudados de forma mais apurada e isso naturalmente exigirá a construção de tipos penais com uma redação mais sofisticada.
“O estelionato, por exemplo, é do Código Penal de 1940, de um tempo que não existia internet. É preciso estudar esse fenômeno a partir das novas tecnologias para a evolução legislativa mais adequada”, declara José.
Outro ponto da nova legislação, que precisará de adaptações futuras na visão de José, é a equiparação das corretoras com instituições financeiras para fins de aplicação da Lei 7.492/86, sobre crimes contra o sistema financeiro.
Adoção da criptomoeda em outros países
Conforme Moreira, são basicamente três modelos de adoção de criptomoedas no mundo. No primeiro, adotado em países como El Salvador, comerciantes são obrigados a aceitar a moeda virtual. O segundo modelo, de países como o Brasil, os vendedores podem aceitar o bitcoin, mas não são obrigados. Além disso, em nove mercados, incluindo o chinês, os criptoativos são completamente proibidos.
Segundo estudo da consultoria LCA, encomendado pela Abcripto, devido à incipiência da criptoeconomia e do uso recente tecnologia blockchain – conjunto de blocos em cadeia, contendo dados e informações, para registro de transações e controle de ativos – existem desafios para o desenvolvimento de boas práticas regulatórias para o setor. Isso permite que a legislação brasileira se aproveite de diferentes aspectos das normas de diferentes jurisdições. Entre as que mais têm inspirado o modelo brasileiro estão as dos Estados Unidos e da União Europeia.
Nos Estados Unidos, a criptoeconomia já integra o sistema financeiro e as exchanges precisam informar o órgão de Receita sobre as operações com criptoativos. Em relação a propostas específicas para estabelecer regras para o setor, destaca-se a Lummis-Gillibrand Crypto Bill, que tem o objetivo de promover a inovação da tecnologia blockchain e dos seus produtos com garantia de proteção aos consumidores.
A União Europeia caminha para o estabelecimento de normas gerais. No entanto, atualmente as exchanges são reguladas por diretrizes de cada Estado-membro e precisam atender a regras de compliance das autoridades financeiras europeias.
Organismos multilaterais sinalizam ainda a urgência de se estabelecer normas internacionais para regulação e tributação de criptoativos. Em abril de 2022, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o padrão internacional para declaração de operações com criptoativos, denominado Crypto-Asset Reporting Framework. No Brasil, desde 2019, há obrigatoriedade de se informar à Receita Federal sobre as operações realizadas com criptoativos.
Fonte: JOTA