Responsabilidade civil no transporte aéreo: uma análise doutrinária sobre o tema
As principais causas do exacerbado volume de ações judiciais propostas em face de companhias aéreas brasileiras
Inobservância das normas e princípios previstos nos tratados internacionais
Os tratados internacionais que dispõem sobre a responsabilidade civil do transportador aéreo, especialmente a Convenção de Montreal, formam um subsistema de normas que deve ser aplicado harmonicamente em todo o mundo, como forma de proporcionar segurança jurídica necessária a garantir efetiva reparação em caso de danos a partir de critérios objetivos e de conhecimento tanto dos operadores como dos usuários dos serviços, o que evita toda sorte de problemas relacionados à determinação da regra aplicável em meio uma miríade de distintas legislações.
A experiência demonstra que o problema do excesso de demandas judiciais em nosso país decorreu das dificuldades de compreensão, tanto por parte do público consumidor, como também do próprio Poder Judiciário, acerca do sistema de organização do transporte aéreo e da legislação especial aplicável.
Em meados dos anos 90, com a justa intenção de ampliar a proteção aos consumidores, que não se encontravam devidamente amparados pela então vigente Convenção de Varsóvia, nossos tribunais passaram, paulatinamente, a adotar interpretações no sentido de afastar a vigência da legislação especial e a partir daí, aplicar o Código de Defesa do Consumidor para responsabilizar o transportador aéreo nas hipóteses sob análise. Mesmo com a substituição do referido tratado internacional pela atualmente vigente Convenção de Montreal, que aperfeiçoou as normas de proteção ao usuário do serviço, foram se multiplicando decisões afastando por completo a legislação especial e aplicando a norma consumerista sem maiores considerações.
Em vista do grande debate que se instaurou nos tribunais do Brasil acerca da aplicação ou não das acima referidas Convenções, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de repercussão geral ao tema (Tema 210) e no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário (RE) 636331 e do RE com Agravo (ARE) 766618 (Tema 2010), decidiu que as questões em debate deveriam ser resolvidas de acordo com as regras estabelecidas pelas Convenções Internacionais sobre a matéria, ratificadas pelo Brasil.
Mesmo após o referido julgamento, continuam, e podemos até dizer que se acirraram, os debates sobre a vigência da Convenção de Montreal, sendo certo que a jurisprudência, em grande medida, tem aplicado o precedente de forma extremamente limitada.
Todavia, as normas e princípios da legislação consumerista não foram concebidos para reger a responsabilidade civil no transporte aéreo o que tem gerado construções interpretativas equivocadas.
Não se quer aqui afirmar que os serviços de transporte aéreo internacional fogem à incidência da legislação consumerista, mas apenas que a referida legislação deve ser aplicada harmonicamente, com a observância da Convenção de Montreal, que traz normas e princípios supralegais, especiais e adequados a reger a responsabilidade civil de empresas aéreas, cuja aplicabilidade integral deve ser
garantida nos termos do art. 178 da Constituição Federal, conforme reconheceu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Tema 210 da repercussão geral.
Ao afastar a vigência da norma convencional e aplicar tão somente o Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência acabou por alargar em demasia as hipóteses de responsabilização do transportador aéreo, de forma inédita em comparação a outros países e mesmo em comparação a outros setores da atividade econômica, do que resultou esse fenômeno de incomparável volume de ações judiciais propostas contra companhias aéreas existente atualmente em nosso país.
Esse efeito verificou-se não apenas com relação à responsabilização do transportador aéreo no transporte internacional, regido pelo tratado internacional, mas também no transporte doméstico.
Análise doutrinária sobre o tema
Em parecer jurídico de autoria dos professores Dra. Maria Rosa Nery e Dr. Nelson Nery Jr.[1], as principais causas da judicialização foram muito bem abordadas, e são a seguir trazidas, ainda que resumidamente, para definitivamente esclarecer a correta aplicabilidade dos conceitos aplicáveis ao dano moral no âmbito do transporte aéreo e a validade dos tratados, especialmente a Convenção de Montreal, no Brasil.
Força maior e caso fortuito não fazem parte do risco da atividade e excluem a responsabilidade do transportador aéreo por atraso ou cancelamento de voo
Fatores como problemas climáticos, infraestrutura aeroportuária, controle de tráfego aéreo ou manutenção não programada de aeronaves, ou outras ocorrências fora do controle da empresa aérea e que obrigam o cancelamento ou atraso na partida de voos, por razões de segurança, constituem força maior ou caso fortuito e rompem o nexo de causalidade, afastando de pronto o dever de indenizar, não se confundindo com “risco da atividade”. Segue posicionamento dos professores Rosa Maria Nery e Nelson Nery Jr. sobre o tema:
• Caso o atraso se dê em decorrência de força maior (g. eventos incontroláveis da natureza) ou de caso fortuito externo (v.g. determinações de autoridades, manutenção de segurança) rompe-se o nexo de causalidade entre o fato da atividade de transportar e o eventual dano, razão pela qual, nessas circunstâncias, o transportador não é obrigado a indenizar. Tanto força maior e caso fortuito, quanto atraso ocorrido como consequência de determinação de autoridade, não ensejam a responsabilização do transportador, ainda que sob a teoria do risco do negócio, pela ausência de nexo de causalidade entre essa atividade e o dano.
• A existência de fatos da natureza fora do controle do transportador aéreo, como os fenômenos da natureza, bem como problemas associados à infraestrutura aeroportuária, controle de voo, ou atraso em razão de segurança do voo e dos passageiros, rompem o nexo de causalidade entre fato e dano, ao mesmo tempo em que não se consideram como “fortuito interno” ou “risco do negócio” para efeitos de indenização.
Os danos decorrentes de atraso ou cancelamento de voo ou perda de bagagem não podem ser presumidos (“in re ipsa”)
A ideia de que atrasos ou cancelamentos de voos ou problemas com bagagem produzem dano moral e geram direito a indenização a este título, além de baratear o instituto, fere a lei e o princípio da reparabilidade civil, além de propiciar enriquecimento sem causa. Assim se manifestaram os Professores Rosa Maria Nery e Nelson Nery Jr.:
• Não há dano moral in re ipsa, per se. Todo e qualquer dano deve ser provado quanto à sua
existência e quantificado quanto à sua extensão. Aquele que alega haver sofrido dano moral em virtude de inadimplemento de contrato de transporte aéreo internacional, deve comprovar o dano e seu montante para que tenha direito de ser indenizado.
• O CBAer 251-A, com redação determinada pela Lei 14034/20 não precisaria ser escrito pelo legislador. É lógico e coerente com o sistema jurídico da responsabilidade civil (quer pelo sistema objetivo, quer pelo sistema subjetivo), que nenhuma indenização se justifica se não houver sido provado o dano, sua existência, conteúdo e extensão e o nexo de causalidade entre fato e dano.
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A ilicitude da indenização por danos morais com proposito punitivo ou educativo
Não bastassem indenizações sem qualquer indício de dano, nos deparamos também com decisões que declaradamente e ao arrepio da lei, concedem indenização punitiva, ou com pretenso proposito educativo, buscando incentivar empresas aéreas a assegurar pontualidade de voos, como se coubesse ao judiciário fiscalizar e regular a atividade do transporte aéreo ou muitas vezes como se fosse possível às empresas aéreas adotarem conduta diversa que não o atraso de um voo em situações de riscos à segurança. Assim se manifestaram os Professores Rosa Maria Nery e Nelson Nery Jr. sobre o tema:
• Não há, no direito brasileiro, previsão autorizando a condenação a indenizar a título de danos punitivos (punitive damages), danos exemplares (exemplary damages), ou como lição para não mais transgredir, sem contar o fato de que a Convenção de Montreal, em seu art. 29, veda a indenizaçao a esse título.
• Decisão judicial que condena a indenizar por danos punitivos, exemplares ou como lição é arbitrária e contra legem e deve ser cassada pelo recurso apropriado e/ou rescindida por ação rescisória
A Convenção de Montreal aplica-se tanto a responsabilidade civil por danos materiais como também danos morais
Não obstante o posicionamento bem firmado pelo STF por ocasião do julgamento do Tema 210, temos nos deparado com reiterados descumprimentos da sua “ratio decidendi”, o que denota despreparo em aplicar o sistema de precedentes no Brasil cujo propósito é uniformizar a jurisprudência de forma a mantê-la coesa e consistente, garantindo assim segurança jurídica em nosso país.
Em razão de comentários “obter dicta” feitos por alguns Ministros ao julgar o Tema 210 acerca de danos morais, matéria sequer objeto de julgamento na ocasião, surgiram posicionamentos que vieram por afastar a vigência da Convenção de Montreal quando o pedido de indenização abarca danos desta natureza, seja afastando o limite de responsabilidade previsto no art. 22, seja com relação à incidência do prazo prescricional previsto no art. 35, ambos do tratado internacional.
Assim se manifestaram os professores Rosa Maria Nery e Nelson Nery Jr. sobre o assunto:
• A CF 5.º V e X, por exemplo, são dispositivos que não fixam piso nem teto para indenização do dano moral. Deixaram livre o caminho para que o legislador infraconstitucional – no caso, a Convenção de Montreal, legislador supralegal –, abarcasse a indenizabilidade do dano moral como manda o texto constitucional brasileiro, mas que a convenção pudesse tarifar essa indenização, como é o caso do limite imposto pelo art. 22 da Convenção.
• Como o texto constitucional não adotou a regra da indenizabilidade ilimitada do dano moral, as considerações feitas pelos Eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal feitas sobre o alcance da limitação da Convenção apenas aos danos patrimoniais, deixando os danos
morais fora daquele limite, não podem ser utilizadas pelo juiz como se fossem parte integrante das teses fixadas pelo STF no Tema 210 da repercussão geral e no RE 636331-RJ que julgou o mérito da questão. Tais fundamentos são obter dicta, vale dizer, não fazem parte das “teses vinculantes” decididas pelo STF. As teses do Tema 210 e do RE 636331-RJ abrangem tanto os danos patrimoniais, quanto os danos morais. Ainda que possam ser cumulados quando oriundos do mesmo fato, como determina a súmula da jurisprudência predominante no STJ (STJ 37), a condenação total dos danos cumulados está limitada ao valor determinado pelo art. 22 da Convenção de Montreal.
• Na fixação da tese do Tema 210 o STF não autorizou a fixação ilimitada de indenização por dano moral.
• Podem ser cumuladas indenizações por dano moral e material derivados do mesmo fato (STJ 37) de transporte aéreo internacional, mas a soma dessas indenizações sofre as limitações do art. 22 da Convenção de Montreal.
• As pretensões indenizatórias decorrentes de transporte aéreo internacional, por danos materiais e/ou morais a pessoas ou coisas (g. bagagens), prescrevem em dois anos, contados da data de chegada ao destino, ou do dia em que a aeronave deveria haver chegado, ou, ainda, do dia em que houve interrupção do transporte (art. 35 da Convenção de Montreal [1999]).
A partir da adequada interpretação das normas especiais aplicáveis, como bem nos ensinam os renomados juristas citados ao longo deste texto, e ainda assegurando-se vigência do Precedente resultante do julgamento do Tema 210 com a necessária amplitude e de acordo com a sua “ratio decidendi”, será possível proporcionar significativa redução do intolerável índice de judicialização hoje enfrentada pelo setor do transporte aéreo.
Fonte: JOTA