Uma inconstitucionalidade chapada na nova Lei de Licitações
Seria mesmo necessário regulamentar o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo?
Elogiada por uns, contestada por outros, a previsão de vedação à aquisição de artigos de luxo é uma das mais controversas da Lei 14.133/2021 (a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos). A redação do caput e dos parágrafos do art. 20 da lei é desastrosa e, de fato, dá abertura para ser interpretada como uma “cláusula de mediocridade”.
Contudo, quer-se adentrar não na polêmica sobre a necessidade da legislação de licitações e contratos administrativos vedar a aquisição de artigos de luxo, mas na inconstitucionalidade chapada do § 2º do art. 20 da lei, ainda não enxergada pelos administrativistas. Segundo o dispositivo em questão, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário teriam 180 dias contados da promulgação da Lei 14.133/2021 para regulamentar os limites para o enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo. Do contrário, não poderiam efetivar “novas compras de bens de consumo”.
As consequências da inércia na regulamentação já foram consideradas problemáticas pela doutrina administrativista, mas ainda não inconstitucionais. Valeria, portanto, investigar o que diz o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre situações como a do § 2º do art. 20 da Lei 14.133/2021.
Já há alguns anos, o STF sedimentou sua jurisprudência no sentido de que são incompatíveis com a Constituição Federal eventuais disposições legais que estabeleçam prazos para o Executivo regulamentar dispositivos de leis. Como em determinada oportunidade destacou o ministro Moreira Alves, não pode o Legislativo assinar prazo para que outro poder exerça suas prerrogativas (ADI 546/DF, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, j. 11.3.1999, DJ 14.4.2000).
O art. 84, IV, da Constituição da República expressa competir privativamente ao presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis. Nesse sentido, é dado ao chefe do Poder Executivo examinar a conveniência e a oportunidade para exercer suas atividades regulamentares próprias. Nas palavras do ministro Dias Toffoli, “qualquer norma que imponha prazo certo para prática de tais atos, configura indevida interferência do Poder Legislativo em atividade própria do Poder Executivo e caracteriza intervenção na condução superior da Administração Pública” (ADI 179/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 19.02.2014, DJe 28.3.2014).
Não bastasse a afronta ao poder regulamentar previsto no art. 84, IV, da Constituição da República, o ministro Eros Grau também já ressaltou que preceitos legais que marcam prazo para que o Poder Executivo exerça sua função regulamentar afrontam o princípio da interdependência e harmonia entre os poderes, previsto no art. 2º do texto constitucional (ADI 3.394/AM, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 02.4.2007, DJ 15.8.2008). Nessa linha, o fato do § 2º do art. 20 da Lei 14.133/2021 precisar ser regulamentado pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário somente amplia a inconstitucionalidade da disposição.
A temática retornou nos últimos anos ao Supremo, que manteve sua linha jurisprudencial (v.g., ADI 4728/DF, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 16.11.2021, DJe 13.12.2021; ADI 4727/DF, Rel. para acórdão Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 23.02.2023, DJe 27.02.2023).
No caso específico do § 2º do art. 20 da Lei 14.133/2021, o Poder Executivo federal se apressou e editou o evasivo Decreto 10.818/2021. Ser-lhe-ia inócua, portanto, a constatação da inconstitucionalidade daquela disposição. Todavia, a maioria os demais entes políticos ainda estão às voltas com as regulamentações mais singelas da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, encontrando-se em situação de suposta “mora regulamentar” no que diz respeito ao enquadramento dos bens de consumo nas categorias comum e luxo. Resta claro, no entanto, que tal mora não tem lastro constitucional.
Em tempos de reordenação das prioridades, dada a prorrogação do prazo de convivência dos regimes licitatórios pela MP 1167/2023, é hora de centrar esforços no que realmente importa para dar aplicabilidade à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Quando ao regulamento do enquadramento dos bens de consumo nas suas devidas categorias, pode-se dar ao luxo de não fazer dele a cinza das horas da nova lei, deixando-o para quando a conveniência e a oportunidade indicarem que ele merece ser feito.
Fonte: JOTA